A imagem latente do carpinteiro naval e suas habilidades de criar embarcações.
É quase impossível dissociar os rios sem as embarcações. Nesse sentido esses artistas e suas obras visam apresentar uma análise sob uma concepção humanística
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Por Paulo Trindade
ARTIGO
Ó A estranhamento que a Amazônia provoca se reverbera na produção de arte contemporânea produzida na região, bem como os desafios e superações realizadas pelo homem diante da magnitude da natureza. Este território sempre foi acolhedor com quem buscou representar a vida, pesquisas, desenvolver projetos que reiteram o conhecimento a partir da produção visual e ainda enfatizar as práticas dos artistas. O tempo, espaço, diversidade e as relações socioculturais relatadas de momentos para observação. A compreensão de tudo isso ultrapassa referências pré-definidas. Uma imagem para além do regionalismo corriqueiro. Nada mais que um desejo de representar um universo de possibilidades, a configuração de uma cosmovisão.
Com esse desejo, sentido e função nasce a instalação “Tilheiro”. Uma homenagem a Dona Neide, Deoclides Bulcão (Seu Didi), Dona Léo, Romualdo Farias, todos os trabalhadores e trabalhadores da carpintaria naval situados à margem da Lagoa da Francesa no município de Parintins no Amazonas. Percebi a necessidade de valorizar o conhecimento aplicado na construção naval. A instalação utiliza sobreposição de fotografias como flashback , uma memória viva. O conjunto de imagens em sinergia com a paisagem sonora fragmentada a partir do dia-a-dia da labuta desses indivíduos, que demonstram de maneira simples sua relação com a natureza. A obra promove um percurso no tempo e no espaço. É um sonho ou utopia, ainda que uma experiência vívida e materializada.
A criatividade sempre esteve presente na minha vida. Eu morei meus primeiros 10 anos na ilha tupinambarana. Sentimos necessidade de realizar este trabalho para contar um pouco dessas narrativas invisíveis que acontecem no Amazonas. No fundo da casa de meus avós havia uma movelaria naval fruto do esforço de Dona Neide e Seu Didi. Toda família passou pelo Tilheiro. Minha mãe, quando jovem, ajudou na carpintaria projetando portas, cadeiras, lemes, e tantas coisas que anos depois descobri naquilo o conceito de arte, design e patrimônio. O tilheiro foi um lugar de troca de conhecimentos entre gerações. Um lugar que me estimulou com os desenhos dos meus tios e tias, a fabricação de móveis para barcos, a criação de brinquedos, papagaio, pião e outros objetos para atividades de lazer. No período da vazante das águas, era comum andar descalço para fazer a travessia do bairro de Santa Clara até o bairro de Santa Rita em uma aventura desbravadora. Na cheia, com a lagoa tomada pelas águas, a umidade era pular da popa do motor e se banhar. Presenciar tudo isso colaborou na minha formação.
Em 2005, a Superintendência de Navegação, Portos e Hidrovias do Amazonas (SNPH), determinou a proibição do uso das embarcações fluviais feitas em madeira. Paralelamente a essa medida, é necessária a valorização da produção dos barcos e seus desdobramentos no campo econômico, social e cultural. As práticas de construção naval possuem características capazes de integrar o conjunto do patrimônio imaterial brasileiro. As embarcações que trafegam nos rios da Amazônia fazem parte da memória coletiva dos povos tradicionais, da cultura ribeirinha e cabocla. Os tilheiros integram esse universo. Eles também são territórios de manutenção e preservação desse processo, de técnicas para construção de embarcações. Conhecimento singular compartilhado por séculos.
O “Tilheiro” representa uma relação passado-presente. No livro “História e Memória” publicado por Jacques Le Goff, podemos refletir sobre a cultura (ou mentalidade) histórica como algo que não depende apenas das relações memória história. A história é a ciência do tempo. Está ligado às diferentes concepções de tempo que existem numa sociedade. Por outro lado a memória, na qualidade de propriedade em conservar certas informações, permite-nos deslocar um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar memórias passadas ou informações passadas, ou que ele representa como passadas. Esta obra se propõe em estabelecer uma linha tênue entre ambos os conceitos.
Ainda nesta década, na tentativa de mostrar uma região pouco conhecida pelos brasileiros, o curador capixaba Paulo Herkenhoff coordenou uma exposição nunca antes apreciada a partir da linha do tempo no século XVIII e que chega até a atualidade, separada em quatro marcos: Iluminismo, Ciclo da Borracha, Modernismo e Contemporaneidade. Assim surgiu um outro olhar com a exposição “Amazônia, Ciclos de Modernidade”. Em paralelo a esta proposta encontramos nossa exposição, com publicação e seminário dedicado ao tema intitulado “Amazônia, Lugar da Experiência”, projetado pelo curador paraense Orlando Maneschy. As obras instigam diversas questões sobre território, além de compreender e refletir o tempo e as narrativas históricas capazes de possuir características ativas junto à elaboração criativa dos trabalhos artísticos.
O elemento Água está sempre presente no universo artístico amazônico. Podemos observar nossos trabalhos de artistas como Moacir de Andrade, Lula Sampaio, Silvino Santos, Leon Righini, Branco e Silva, Luiz Braga e tantos outros que se aventuraram em representar o meio de transporte mais utilizado na Amazônia, como embarcações fluviais. É quase impossível dissociar os rios sem as embarcações. Nesse sentido esses artistas e suas obras visam apresentar uma análise sob uma concepção humanística, onde as manifestações artísticas exercem um papel de dar frescor poético ao cotidiano. A arte enquanto potencializadora de concepções.
A imagem latente do carpinteiro naval e suas habilidades de criar embarcações. O ambiente de trabalho: o tilheiro. Lugar mágico onde os barcos surgem com a capacidade de flutuar e se deslocar sobre as águas. Geometria, princípios da física, poética e cultura são conhecimentos aplicados com o passar do tempo e compartilhados a cada fabricação de barcos, patelões, bajaras, canoas, voadeiras e rabetas. Os cascos tomam forma lentamente na paisagem do lago ao som do calafeto que ecoa. Então, surge uma navegação que desafiará diariamente o Rio Amazonas.
Agradecimentos:
Centro Popular do Audiovisual
Coletivo Difusão
Família Trindade
Família Farias
Naty Veiga
Sávio Stoco
Turenko Beça
Paulo Trindade, artista, produtor cultural e pesquisador. Atua nas áreas de Educação, Artes, Políticas Públicas, Produção Cultural, Design e Mídia onde desenvolve projetos socioculturais e ambientais desde 2005. Graduado em Licenciatura em Artes Plásticas pela Universidade Federal do Amazonas. Integrou equipe da Casa Fora do Eixo Amazônia em Belém (PA), Casa Coletiva (RJ) e Casa das Redes em Brasília (DF). Faz parte do Coletivo Difusão e Centro Popular do Audiovisual (AM). É suplente da Cadeira de Artes Visuais no Conselho Municipal de Cultura de Manaus 2017–2019.